A dor de me despedir de mim

Ttio – Quiquijana, Cusco, Peru

No último domingo, foi meu aniversário. Era meu terceiro dia aqui na fazenda Murillo, em uma comunidade pequena no interior de Cusco, Peru, onde estou fazendo um trabalho voluntariado junto com meu namorado e outros viajantes. Logo que abri os olhos, coloquei para tocar uma playlist um pouco melancólica que tenho no celular. Eu sou grata à vida, e geralmente gosto de celebrar aniversários, mas naquele dia, coloquei para tocar as músicas que realmente representavam meu estado de espírito.

Acordei estranha, introspectiva, reservada. Havia algo que pesava. Fui ao banheiro tomar um banho e, quando tirei as roupas, já comecei a chorar olhando para o espelho. Pensei: “um bom banho vai tirar de mim essa tristeza.” Quando abri o chuveiro, caíam apenas poucas gotas e muito geladas. Algo bem comum aqui na fazenda. “Banho gelado no meu aniversário não”. Chorei ainda mais. Perguntei aos outros viajantes, enrolada na toalha com a cabeça para fora da porta do banheiro, e me disseram que seria necessário esperar mais de uma hora, pois o tanque teria que ser enchido.

Naquela momento, tive raiva. Da situação, de estar longe de casa, longe dos meus, passando
o aniversário com pessoas desconhecidas. Eu amo conhecer pessoas e é por isso também que viajo, mas naquela hora meu mau humor não me deixava lembrar disso.

Não tinha o que fazer quanto ao banho. Coloquei a roupa novamente e me dirigi à tenda que fica do outro lado da rua, de uma peruana chamada Marlene, para conseguir sinal de internet bom para responder as mensagens de aniversário que minha família havia enviado na meia noite do mesmo dia. Temos um ritual de dar os parabéns sempre às 0horas. E, mesmo longe, eles não falharam.

Antes de ir a tenda, decidi que era melhor me recompor e respirar um pouco. Sentei na grama, e ainda escutando minhas músicas melancólicas no fone de ouvido, chorei. Chorei copiosamente.

Por que eu chorava, afinal? Me perguntei. Tentei entender o que aquelas lágrimas queriam me dizer. Elas tinham um tom de despedida. Mas de quê?

Entendi que eu me despedia de mim. Sim, eu estava dizendo adeus a uma parte de mim mesma. Uma versão que não mais existiria. O passar dos dias a estava levando. Entendia que eu me despedia de uma fase. De um eu, de uma idade. De um tempo que não voltaria mais. Chorava, sim, por amor à juventude, por um medo (secreto) de perdê-la. Ou seria apego? Eu estava, de fato, me despedindo de um ciclo para abrir outro. E dói. Nunca fui boa em despedidas.

Chorava também por tudo que vivi no último ano. Por tudo que não vai mais voltar. Pela tia avó que perdi, e nem pude sequer me despedir. Chorava também por tudo que eu venci. O término de uma relação nociva a minha saúde mental, o desafio de sair de casa, o sonho de morar na praia por um tempo, e depois a coragem para colocar a mochila nas costas e viajar por aí.

Chorava por tudo que superei, e também pelo que errei. Chorava por tudo que de alguma forma ficou para trás. O que foi bom, e o que foi ruim. Chorava por ter que encarar minhas sombras tão de frente. Chorava por estar tão afastada da escrita e desconectada de mim mesma.

Nesse momento, lembrei de uma fala que minha terapeuta me disse na última sessão, depois de eu ter ficado um mês sem vê-la. “Ao invés de criar histórias na sua cabeça, conte as histórias que estão acontecendo ao seu redor. Conte a sua história. Escreva. Apenas escreva.”
E aqui estou. Escrevo depois de um dia intenso, tão intenso que parecem ter sido vários dias dentro de um.

Depois de secar as lágrimas, falar com a família e me preencher da boa energia deles e de outras mensagens lindas que recebi, fui me recarregar de natureza.Voltei a fazenda, avistei José, um brasileiro de Manaus muito querido que também estava na fazenda. Quando ele me deu bom dia, logo o abracei e chorei um pouquinho mais. José tem uma luz muito forte, e não me contive quando vi seu sorriso. Eu só o conhecia há dois dias, mas quem disse que tempo importa, afinal? Pronto. Acho que agora já havia chorado o suficiente.

Tomei o banho, vesti uma roupa mais leve e, junto com meu namorado, fui fazer uma pequena trilha que há nos fundos da fazenda. Andamos cerca de 20 minutos e encontramos uma cascata com um riozinho.

Ele não queria entrar, além de ser inverno e ventar muito, a água era gelada de doer os ossos. Para mim não existia a possibilidade de ir até uma cachoeira – ainda que pequena – e não entrar. Eu necessitava me lavar com aquela água doce e cristalina. Assim fizemos. Doeram os ossos, é verdade, mas o espírito se alegrou. Depois ficamos ali por mais alguns instantes, apenas existindo e ouvindo os sons da natureza.

 

Quando retornamos, procuramos o restaurante da Marlene. Marlene sempre serve comida na tenda em frente à fazenda, mas naquele domingo serviria em um restaurante mais longe. Caminhamos até encontrá-la. Depois de almoçarmos, retornamos à propriedade e nos sentamos em uma casa de árvore para assistir o pôr do sol e continuar apenas vivendo no agora. O banho de cachoeira realmente havia nos colocado num estado de paz e serenidade. “No que você está pensando?”. “Nada, estou apenas existindo.” Esse foi um dos diálogos que tivemos naquela tarde.

José, o brasileiro querido, além de uma Argentina muito amável que estava na fazenda, Camila, se despediram pois iriam seguir viagem naquela noite, junto com outros viajantes. Lamentei, pois eram uns dos que eu mais havia tido conexão até o momento, e adoraria ter a oportunidade de trocar mais com eles.

A noite seguiu, consegui sinal de internet na fazenda (por sorte) e respondi a mais algumas mensagens de aniversário. Decidi fazer guacamole (uma das minhas comidas favoritas na vida) e comprar umas cervejas. Os viajantes de Malta e duas espanholas que haviam recém-chegado também foram comigo comprar cerveja na tenda da Marlene.

Eu havia comentado que queria muito uma fogueira para encerrar meu dia bem, e enquanto terminava de fazer a guacamole junto com o Vitor, todos recolheram troncos nos arredores da fazenda e fizeram o fogo. “Seu fogo está pronto, Renata”, disse Gemma, uma das espanholas queridas. Eu me senti tão acolhida ao ouvir isso.

Em volta do fogo, cantamos diversas canções em inglês enquanto Vitor e Irik, do Canadá, revezavam o violão. Cantamos músicas clássicas e me empolguei muito quando a Maltesa Rose cantou Wake me UP, de Avicci. Essa música sempre mexeu muito comigo e foi perfeita para aquele momento. A letra fala sobre viver, sobre juventude, sobre sabedoria e sobre a jornada de se encontrar.

Em poucos minutos, estávamos todos cantando e pulando alto, e tivemos que entrar na sala de instrumentos para continuar a festa, já que um viajante francês disse que não conseguia dormir com nosso barulho.

Seguimos a festa dentro da sala de instrumentos, todos na mesma energia, criando danças sincronizadas, e dando risadas de tudo, desde Maria tentando tocar bateria no ritmo da música, até as palhaçadas espontâneas de Jonathan- outro canadense que até então parecia super tímido durante o dia.

Enquanto dançava de olhos fechados e com os braços para o alto, eu pensava em como todas as pessoas – independente de sua cultura – são parecidas. O que todos querem é ser feliz. O ser humano realmente foi feito para conectar.

Pensei também sobre os encontros da vida. As energias que se aproximam por ressonância. Pensei que dificilmente esse grupo irá se reunir de novo, nesta mesma configuração, ao
longo da vida. Talvez eu nunca mais veja alguns deles. Mas por um instante compartilhamos um momento real e e isso é tudo.

E assim terminei meu dia agradecendo aos desconhecidos que fizeram a minha noite. “Thank you, guys, you made night.”, eu disse. Um dia que começou em lágrimas e terminou com muitos sorrisos.

 

Por Renata Stuart

 

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