A muleta do automatismo


Você já sentiu vontade de falar algo para um desconhecido?


Ontem o gás acabou aqui em casa. O comércio que fornece o gás é o mesmo que vende galões de água, e o entregador de ambos quase sempre é o mesmo: um jovem alto, de cabelos loiros escuros e com cerca de 30 e poucos anos. Não sei seu nome, então vamos chamá-lo de Carlos.


Carlos chega, buzina com a moto, avisto-o da varandinha e peço para subir. Seja quando eu o recebo ou quando meu namorado, Vitor, o recebe, é sempre a mesma coisa. Carlos nunca olha nos nossos olhos. Nunca. Ele não responde quando falamos bom dia, nem quando agradecemos ou desejamos bom trabalho. Apenas faz sua entrega, coloca o galão na pia e se vai, já que o serviço geralmente está pago.


Mas Carlos não é rude. Não acho que ele esteja sendo mal-educado ou algo do tipo. Na verdade, minha impressão é que ele não está realmente ali, apenas o seu corpo, por mais estranho que isso possa parecer. Certa vez, ao notar que ele parecia cansado, ofereci um copo de água gelada, e ele simplesmente respondeu “não”.


Ontem, ao comprar o gás, decidi pagar com cartão, e Carlos trouxe a maquininha. Suas únicas palavras foram “deixa que eu faço”, quando meu namorado tentava trocar o botijão vazio. Mencionamos que esquecemos de pedir água, que estava acabando, mas que deixaríamos para o dia seguinte. Ele não rendeu assunto. Em seguida, perguntou: “crédito ou débito?”. Respondi crédito, ele processou o pagamento e se foi, sem reagir às nossas palavras de “obrigado” e “bom trabalho”.


Não sei o que está acontecendo na vida de Carlos e posso estar profudamente enganada sobre tudo o que estou escrevendo. Só posso relatar o que senti: um profundo estado de automatismo.


Infelizmente, isso não é algo novo. Existem milhares de “Carlos” por aí, e é doloroso pensar nisso. Mas, neste caso, por serem encontros recorrentes, sinto que me envolvi mais, pois concluí que não era coisa de um “dia mal”, era mais como um estado anestésico diante do agora, já que ele não é satisfatório. 


Na minha perspectiva, Carlos claramente não está feliz no trabalho, como a triste realidade da maioria da população, mas será que tem algo a mais? Onde Carlos está enquanto seu corpo executa suas atividades diariamente? Por onde sua mente está vagando? Será que tem algo mais acontecendo em sua vida pessoal? Será uma doença, uma perda, um trauma? Não sei.


Reconheço que falo do meu lugar de privilégio, de poder trabalhar com algo que me satisfaça, no conforto de casa, e que me permite viver bem. E até me sinto mal por escrever sobre isso. Talvez Carlos já tenha planos de criar caminhos que lhe tragam mais satisfação, e eu seja apenas uma intrometida, presumindo saber mais sobre a vida dos outros do que eles mesmos.


Confesso que uma parte de mim tem vontade de conversar com Carlos, puxar uma conversa com amorosidade, sabe? Talvez até enviar uma carta anônima. Gostaria de dizer a ele que, embora eu não saiba o que ele está enfrentando, seja o que for, que ele se esforce para estar consigo mesmo diante disso; sentindo a raiva, a frustração, o medo, a tristeza – que são estados passageiros.


Queria dizer a ele que estar presente, mesmo nos momentos mais sombrios, é a única maneira de não se dissociar de si mesmo. Queria poder contar que ele não é a mente dele, não importa o que seus pensamentos estejam repetindo em looping dentro de sua cabeça.


Gostaria de dizer a ele que, se o problema principal for o trabalho, ele pode, sim, aos poucos, construir um novo caminho, por mais impossível que isso pareça agora. E que se ele puder ser capaz de enxergar onde está agora como apenas uma etapa para algo mais gratificante no futuro, tudo fluirá melhor. Que resistir ao que é só intensifica o desconforto.


Queria fazer Carlos abrir os olhos. Queria que Carlos, apesar das dores, pudesse apreciar a bênção que é estar vivo e encontrar alguma beleza no cotidiano, e não apenas nos dias de folga ou férias.


Mas só de pensar em falar tudo isso, sinto uma leve dose de vergonha, pois vejo o quanto esse discurso pode ser vazio quando a preocupação do outro é simplesmente sobreviver. O quanto esse discurso pode parecer raso quando o outro gasta uma porcentagem gigantesca do seu dia em um ofício que não o satisfaz, com um chefe que talvez o menospreze, mas precisa estar ali para se manter na vida. O quanto essas palavras podem parecer distantes para alguém que talvez nunca tenha recebido amor na vida, ou que não tenha estrutura emocional para lidar com adversidades ou um grande trauma.


Diante disso, volto então para a outra parte de mim, mais centrada e consciente, livre da ideia egóica de que posso salvar alguém. O autoconhecimento me ensinou a abandonar a ilusão de que posso salvar as pessoas e me fez entender que só posso ajudar aqueles que desejam ser ajudados e que abrem espaço para isso. Jamais de uma maneira que me consuma, mas de forma leve, como quem oferece o que tem pelo simples ato de servir e amar, não para se sentir útil ou agradar.


No entanto, acredito firmemente que podemos plantar sementes. Uma palavra despretensiosa que talvez não germine agora, mas que, em algum momento, faça sentido, brotando uma faísca boa do lado de dentro. Já plantei algumas sementes quando senti essa intuição forte e clara dentro de mim, mas apenas em contextos específicos e fluidos, onde minhas palavras soaram livres de qualquer julgamento, tecidas com simplicidade e sutileza.


Para mim, somos todos canais para que coisas boas aconteçam através de nós. Minha definição de Deus não está fora, e sim dentro, integrado ao que somos. Por isso, nessas ocasiões em que comentei, quando não me restam dúvidas, me permito ser um canal, ainda assim, reconhecendo que não salvo a ninguém.


Enquanto pensava no que fazer sobre o caso do Carlos, me deparei com uma frase nas redes sociais que me trouxe a resposta:

“Nada é mais desejável do que se livrar de uma aflição, mas nada é mais assustador do que ser privado de uma muleta.”-  James Baldwin



Todos queremos uma vida com felicidade e bem-estar, mas, muitas vezes, também não queremos soltar certas muletas emocionais que nos trazem algum tipo de conforto e segurança. Esses apegos podem incluir hábitos ruins, vícios ou relações tóxicas que sabemos que não nos fazem bem, mas os mantemos, já que é algo conhecido, confortável, familiar.


Talvez a muleta de Carlos, neste momento, seja viver no piloto automático. O estado de congelamento pode ser a ferramenta que ele encontrou para lidar com as atuais cirscunstâncias de sua vida. E quem sou eu, na minha pequenez, para tirar este conforto dele?


Tenho aprendido que estar conectado à nossa essência e autenticidade não se trata apenas de ser capaz de se expressar verdadeiramente, dizendo o que realmente pensa e sente quando necessário, mas também de reconhecer e respeitar os limites do que o outro está preparado para ouvir.

É preciso respeitar o processo e a jornada interior do outro, uma jornada que só acontece de dentro pra fora, e não o contrário.


Assim, recolhendo-me ao meu lugar, olhando para o que diz respeito a mim e não ao outro, me questiono: se isso me toca de tal forma, o que devo aprender com isso? o que isso está tentando me ensinar?


Acredito que, de certa forma, isso me lembra de ser grata pelo privilégio de poder cultivar a presença, de estar em mim mesma, no meu corpo, vivenciando o agora em vez de fugir dele. E o quanto isso é raro e valioso nos dias de hoje. Claro que tenho meus momentos de automatismo, afinal, sou humana, mas, felizmente, estou cada vez mais consciente deles, sendo capaz de me acolher e me trazer de volta.


Outra lição que posso extrair de tudo isso é sobre a empatia e a compaixão. Não podemos jamais esquecer aquela frase que diz: “Todas as pessoas que você conhece estão enfrentando batalhas sobre as quais você nada sabe. Seja gentil. Sempre.”


Mesmo que Carlos não seja gentil comigo, seguirei sendo com ele, pois é isso que tenho a oferecer. Tenho certeza que ele também tem isso dentro dele, só não está conseguindo acessar agora. E tudo bem.


Com amor,

Renata Stuart

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