Eu abandono a corrida

Acordei. Bebo um copo d’água, lavo o rosto, escovo os dentes, passo o protetor solar.  Biquíni, bermuda de treino, boné, relógio, pochete, celular, fones de ouvido. Tênis, chave da casa, pé na rua. Corro 2km até a praia mais próxima. Depois da corrida, sento na areia para desfrutar um pouco dos hormônios da felicidade que acabo de liberar, largo a bermuda e os pertences ali, e me jogo no mar prateado pelo sol luminoso.

Não há quase ninguém por perto, exceto alguns poucos trabalhadores dos quiosques preparando as mesas, anunciando o começo de mais um dia na charmosa vila de Arraial D’Ajuda, no sul da Bahia. Após boiar por alguns minutos, saio da água e me preparo para voltar correndo para casa. 

Enquanto começo a recolher minhas coisas, percebo uma senhora de uns 60 e poucos anos sentada na areia há alguns metros. Ela também parece estar de saída e, ao guardar seus pertences, nossos olhares se cruzam quando ambas colocamos o boné no mesmo instante. Ela solta um riso de canto de boca, e eu também, e a gente se cumprimenta mesmo sem dizer uma palavra. Achei curiosa a coincidência de colocarmos os bonés quase que instantaneamente. 

De alguma forma, me vi nela, algo me pareceu familiar. Senti que ela poderia claramente ser eu, daqui há alguns anos, vivendo seu contemplativo ritual matinal, em algum lugar bonito nesse mundo. “Então a vida é este intervalo?” – pensei, enquanto ela começava a caminhar na orla da praia. 

Relendo alguns dos meus escritos antigos, de mais de uma década atrás, percebo o quanto o tempo sempre foi uma pauta na minha vida. Mais do que uma pauta, uma inquietação, uma obsessão. Aniversários sempre tiveram duplo sentido para mim: uns 70% de alegria e 30% de tristeza.

A primeira vez que senti a frustração de não poder segurar o tempo (pasmem) foi no dia seguinte da minha festa de 15 anos. Me lembro de acordar com uma sensação estranha. “Então é isso? Já fiz 15?” Talvez porque eu tivesse esperado muito por aquele momento e o fato dele ter passado deixou certo vazio. Talvez porque minha paixão pela vida esteja intrinsecamente ligada a um certo descontentamento com sua brevidade.

Mais tarde, já na faculdade, me lembro de refletir muito sobre a absurda proporção do tempo gasto trabalhando em comparação à pequena parcela verdadeiramente aproveitada.

Então, como você pode ver, não se trata de uma crise de meia idade porque passei dos temidos 30 anos. Essa relação meio confusa com o tempo me acompanha há anos e, com certeza, teria tudo para se intensificar agora. 

Afinal, já não estou mais no que chamam de “auge”. As linhas de expressão já se fazem presentes, demarcando o espaço que as rugas vão habitar. Estrias, bigode chinês, dores na lombar, o primeiro fio de cabelo branco. Enquanto a gravidade escancara sua eficácia, o metabolismo tende a se intimidar. É, acho que chegou a hora de dizer aquela frase clichê: 

Estou ficando velha.
Mas quem não está? A verdade é que estamos todos, diariamente, envelhecendo. E o irônico é que a gente podia jurar que teria 20 e poucos para sempre. Mas quanto mais avançamos na escadinha da existência, mais silenciamos nossa prepotência ao perceber que não, não somos imortais.

Somos todos poeira estelar, como disse Carl Sagan.

Portanto, ainda que pareça, este não é um texto sobre o medo de envelhecer. Não tenho este medo. Se almejo desfrutar ao máximo do presente que é estar viva, então, sim, quero envelhecer. Se tiver o privilégio de ficar velha, significa que terei mais histórias, mais experiências e mais doses daquela sensualidade que, convenhamos, só vem com a maturidade e a liberdade cada vez maior de ser quem se é.

O que me aflige é não saber usar o meu tempo aqui com sabedoria para criar uma vida que me faça olhar o retrovisor e me celebrar pelo caminho percorrido.

É como se eu quisesse dizer ao tempo: “Calma, vá devagar, ainda tenho tanto a experienciar, a realizar.” Em meio a tantos anseios para mais de um século, algumas das perguntas que já pairaram por minha mente são:

Estou fazendo o melhor do tempo que tenho?
Estou me tornando ou me tornei quem eu queria ser? 
Ainda há tempo suficiente para fazer tudo que sonhei?
Vou carregar alguma dose de vida não vivida? 

há quanto tempo
venho correndo
atrás de ter
só mais um pouco
de tempo? 


Na pressão do tempo curto
quem ficou curta
foi a minha respiração. 


ANSIEDADE
ou
ânsia da idade?


tanto e tudo
me instiga a produzir
pouco e quase nada
me convida a sentir

Enquanto compartilhava alguns desses questionamentos com minha terapeuta, ela me disse: “O tempo não foi feito para ser controlado. Relógios e calendários são apenas uma tentativa inútil. Ele foi feito para ser vivido.”

O que venho aprendendo, então, é que assim como só curo o medo da morte das pessoas que amo vivendo com amor, só posso curar o medo do tempo vivendo com presença. 

Se estiver com a mente no amanhã, no que me falta fazer ou no tempo que me resta, perderei o que está acontecendo neste exato instante. E aí, sim, de fato, a vida irá escorrer pelos meus dedos.

se a vida é curta
porque então 
deixei de curtir? 

Eu não quero deixar de curtir. Não quero conviver com essa constante autocobrança de ter que fazer x, ser y e realizar z , sabe? Não quero perder a presença. Quero estar em mim. Quero calma na alma para apreciar quem sou e onde estou neste momento.

Como disse Lenine, “enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso, faço hora, vou na valsa, a vida é tão rara.”

Quero, acima de tudo, estar consciente de quem recebe meu breve e precioso tempo. Afinal, se estou doando meu tempo a algo ou a alguém, estou doando uma parte considerável da minha vida.

tempo = dinheiro 
tempo = vida 

A verdade dolorosa é que talvez não tenhamos tempo para realizar tudo o que a gente pensou ser possível um dia. E se seguirmos vivendo nessa constante corrida, perderemos a única parte da vida que nos é garantida: o agora.

O que não quer dizer que devamos silenciar os sonhos que existem dentro de nós. De forma alguma.

Mas, como uma alma intensa que sempre teve muita sede de vida, tenho tentado beber cada gole com leveza, sem afobação, fazendo o esforço diário de estar desperta para priorizar o que faz sentido para mim.

Sendo assim, eu abandono a corrida. Não aquela que me libera serotonina e endorfina, mas a que me faz prisioneira da ansiedade.

Quero mesmo é caminhar…Sentir a força sutil de cada passo, perceber a textura do solo sob meus pés e apreciar a beleza de cada manhã, semana, mês, ano.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Gostou? Compartilhe!