Eu tenho um vestido de bolinhas. Não um vestido de POÁ qualquer, mas um daqueles bem retrôs. Comprei há cerca de 9 anos, para uma sessão de fotos temática que resolvi me dar de presente na época, quando completei 25 anos. Ele é estilo regata, tem o fundo preto cheio de bolinhas brancas, e tem um leve decote. O tecido não sei dizer ao certo, acho que é poliamida.
A única vez que o usei foi nesse ensaio fotográfico. Apesar de amá-lo, nunca mais tive oportunidade de vestí-lo. Durante todos esses anos, o coitado esteve preso, sem sequer ver a luz do dia, dentro do meu guarda-roupa. Nada “rodado”.
O guarda-roupa fica na casa dos meus pais, em Belo Horizonte, minha cidade natal. Não moro mais lá, mas sempre retorno para casa deles para passar breves temporadas e matar a saudade.
Vou, ocupo meu antigo quarto, durmo, acordo, e vivo aquela rotina por algumas semanas, como se eu ainda não tivesse crescido. Como se tudo fosse como antes. Como se o tempo ainda não tivesse passado.
Em uma dessas visitas, decidi liberar espaço no guarda-roupa. Me incomodava ver aquelas roupas todas paradas ali. Tantas peças que já nem uso, e outras que nem sequer combinam mais com a pessoa que sou hoje. Então criei o hábito anual de doar roupas. Mesmo aquelas que me parecem bonitas, em bom estado de conservação e ainda me servem. A regra é: se não usei nos últimos 12 meses, não vou usar mais. Então desapego e passo pra frente.
Mas, por alguma razão, não consegui fazer isso com o tal vestido de bolinhas. Sempre olhava para ele e pensava: “Qualquer dia hei de usá-lo. Vai que me convidam para uma festa retrô? Preciso guardá-lo!”
Pois bem. Para minha surpresa, o momento chegou. No último mês, minha mãe completou seis décadas de vida. Para celebrar, ela decidiu fazer uma super festa no estilo anos 60. Eu mesma criei o convite do evento e destaquei a informação: “Venha vestido a caráter”.
Logo me lembrei que não precisava me preocupar, pois já tinha o que vestir na grande noite: meu vestido de bolinhas. No entanto, eu só chegaria à casa dos meus pais quatro dias antes da festa. Por um instante, tive receio de que o tal vestido já não me caísse tão bem mais. Talvez já estivesse curto para mim ou com aspecto de velho. Afinal, fazia quase uma década desde que o comprei.
Eis que, num impulso pesquisando possíveis novas opções na internet, acabei comprando outro. Não dava para correr o risco de ter que arranjar roupa na última hora. Comprei o novo vestido. A parte superior era toda preta, e ele parecia mais acinturado, elegante e rodado. Quando cheguei à casa dos meus pais, lá estava a embalagem, sobre a minha cama.
Abri o pacote e logo o experimentei. Para minha decepção, ficou péssimo. Apesar de bonito e ter a saia mais rodada, ele não deu match com meu corpo. O caimento ficou estranho, eu parecia uma “maria-mijona”.
Na sequência, provei meu antigo vestido. Para minha surpresa, ficou per-fei-to. Como minha mãe disse, “fiz uma compra desnecessária”. Eu não podia imaginar que, quase uma década depois, ele ainda se alinharia às minhas medidas de maneira tão fluida.
Entrar nele e me olhar no espelho foi como entrar em uma máquina do tempo. Logo me lembrei da Renata que eu era quando o vesti pela última vez. Seu mais recente ato de coragem havia sido há pouco mais de um mês, ao terminar uma relação de quase 8 anos que todo mundo jurava que daria em casamento. Pela primeira vez desde os seus 17 anos, ela estava se descobrindo só, mesmo morrendo de medo de estar deixando passar o “amor de sua vida”.
Quando posou para aquelas fotos usando o vestido, seu segundo ato de coragem já estava sendo gestado, e se concretizou dois meses depois: abandonar seus clientes e sua agência de comunicação que começava a crescer e partir para outro país.
A verdade é que ela não se reconhecia na vida que estave criando até ali e aquele ensaio fotográfico era uma tentativa de se enxergar, ainda que pelas lentes de outra pessoa.
A partir daí, as mudanças vieram. Guardou o vestido de bolinhas para seu eu do futuro, sem saber quando o usaria de novo. Fez as malas e, com a desculpa de aprender inglês, foi para a Irlanda.
Trabalhou como babá de quatro crianças irlandesas e foi garçonete de um pub turístico ao lado de pessoas de diversas nacionalidades. Viajou para dezenas de países, conheceu pessoas de tudo que é canto e tudo que é jeito. Teve o coração partido e, inevitavelmente, partiu corações.
Diante de tantas descobertas, sentia-se, por diversas vezes, como uma ervilha solta no mundo, pequena e insignificante. Em outras, parecia mais uma andorinha feliz que recém descobrira suas asas. “Então essa sou eu, que saudade eu estava de mim!”, pensou enquanto caminhava pelas ruas de Dublin em uma tarde de verão, ouvindo músicas em seu fone de ouvido e cantando alto.
Dois anos e meio depois, mais um ato corajoso: o retorno para casa. Não que seu lar não fosse um bom lugar, pelo contrário; o receio era sobre a versão de si que encontraria por lá. Ao chegar, percebeu que, embora já não fosse mais a mesma, nem mesmo o tapete da sala havia mudado de posição. Era como se o tempo nunca tivesse passado. Como se toda aquela expansão vivida não passasse de um mero sonho.
Começou, então, a trabalhar em uma multinacional, na busca pela sonhada carreira de sucesso, com estabilidade e benefícios. Para se distrair da crise existencial que estava prestes a se instalar – já que ela voltara para sua vida antiga sendo uma nova pessoa – acabou se doando demais a uma relação que começou de repente e logo se revelou muito nociva. Na época, não se falava em relacionamento abusivo no Brasil, tampouco em pessoas narcisistas. Mas ela sentia que havia algo muito errado.
Tendo que confiar apenas em si mesma, já que até mesmo suas amigas achavam que não passava de exagero, ela conseguiu sair disso, mas extremamente abalada psicologicamente.
Para fugir de encarar todo aquele vazio, se jogou no trabalho. Ela até que tentou se encaixar à rotina do escritório de 8h às 18h, além das três horas por dia no trânsito e muitas horas extras. O resultado foi um combo de ansiedade, síndrome do pânico e bons quilos a mais.
Entre idas ao banheiro do escritório para chorar, sessões de Reiki, finais de semana isolada em seu quarto fazendo cursos e lendo sobre autoconhecimento e espiritualidade tentando se entender em meio aquele turbilhão, ela mergulhou de maneira profunda pra dentro de si.
Encarou partes feridas que precisavam de atenção, crenças que a impedia de se movimentar, padrões que travavam sua evolução. Revisitou sua infância para resgatar sua essência, sua história para entender seus valores e foi, pouco a pouco, ganhando clareza sobre os próximos passos. Ela tinha uma certeza: precisava criar um caminho profissional mais livre.
Daí veio a pandemia, um cenário inimaginável, a carta de alforria da CLT e, finalmente, a realização de trabalhar 100% on-line, podendo finalmente devolver o oxigênio àquela andorinha sufocada.
Corta para o presente. Hoje, sem uma casa fixa, viajando pelo mundo, nunca me senti tão leve e livre. Só o que pesa é a saudade, que está sempre na bagagem. Nesse caminho, veio a sorte de um amor tranquilo, que também é uma andorinha. Sem aquela ideia romantizada do “amor da minha vida”, como antes, mas com a lucidez de que amor a gente escolhe e constrói, todos os dias, enquanto fizer sentir e fizer sentido.
Por meio do meu vestido de bolinhas, atravessei o tempo e reencontrei aquela Renata de 25 anos como quem reencontra uma velha amiga. Hoje, consigo ver sua ingenuidade, seus medos, suas dúvidas. E sua sede de realizar sonhos que sequer sabia que tinha.
Na festa de 60 anos da minha mãe, enquanto meu vestido balançava junto com meu corpo ao som de “I Say a Little Prayer”, de Aretha Franklin, fechei os olhos e agradeci a essa jovem do passado por ter seguido seu coração e nos trazer até aqui, mesmo sem saber onde tudo isso daria.
No dia seguinte, após lavar meu vestido à mão e deixá-lo secando ao sol, eu o coloquei no fundo do guarda-roupa com a certeza de que não serei eu a próxima pessoa a vestí-lo. Talvez uma versão de mim que ainda não conheço e nem tenho pressa de conhecer.
