Gente com a alma aberta


27 de setembro de 2017 


Era madrugada de sábado para domingo, por volta de 3h da manhã. Este era o horário em que todos os pubs e nightclubs fechavam as portas na curta nightlife de Dublin, e quando as pessoas colocavam suas dezenas de camadas de casacos para retornar às suas casas. As ruas ficavam relativamente agitadas com o pós noite, embora sem comércios abertos, a não ser os fastfoods e poucas lojas de conveniências.

Alguns bêbados engraçados na rua, pessoas famintas na fila do McDonald’s e afins e outras em busca das festas privadas que seguiam até o amanhecer, as chamadas after parties. Ainda sinto saudade da leveza dos meus ombros ao caminhar por aquelas ruas, tão tarde (ou tão cedo), sem medo algum de ser vítima de um assalto ou coisa pior. 

Eu e três amigas que moravam comigo voltávamos de uma despedida de solteira de outra amiga, na qual fizemos um épico e divertido “Pub Crawl”, que significa um tour por vários pubs, nas famosas ruas do Temple Bar, região dos bares mais famosa da capital irlandesa.

Temple Bar, 2016

Morávamos no centro de Dublin, perto da Universidade Trinity College, além de um prédio da Garda (a polícia da Irlanda) e de alguns pubs – a cidade é cheia deles! Na rua de casa, um grupo que havia acabado de sair algum bar parecia estar se divertindo muito. Eles cantavam, davam gargalhadas e aplaudiam o amigo mais expansivo deles, Luke, que dançava e plantava bananeiras alegremente, como quem se sente totalmente livre na própria pele. Luke era alto, loiro escuro, de cabelos longos, e com a barba quase ruiva.

A energia em torno deles estava tão elevada que não pude resistir à vontade de interagir com eles; acho que eu queria fazer parte, ainda que por alguns segundos, daquele breve momento sincero. Uma das coisas que descobri sobre mim, durante meu intercâmbio na Irlanda, é que tenho uma habilidade nata para me conectar com as pessoas, sem forçar a barra. Enquanto passava por eles, eu aplaudia e sorria assistindo àquela cena de fim de noite que só acontece nas ruas de Dublin, e deixei escapar uns gritinhos de empolgação.

Como quem carrega uma garrafa cheia de água, dispostos a doar a todos que têm sede, eles me ofereceram a energia deles, com olhares e gestos abertos e convidativos. Entre risadas e descontração, fomos todos caminhando e conversando pela rua, enquanto Luke começou a soltar alguns pensamentos filosóficos sobre a vida. O diálogo simplesmente fluiu. Eu disse a eles o quanto amava estar naquele país, o quanto o alto astral do povo irlandês se parece com o do povo brasileiro, e o quanto simplesmente me encantava por esses momentos não planejados da vida, em que você esbarra um desconhecido na esquina e acaba tendo uma troca fluida e gostosa.

Já quase na porta de casa, a conversa seguia muito boa, então paramos para falar um pouco mais antes de me despedir. Uma das minhas amigas subiu para o apartamento, já cansada, e a outra continuou. Como se não bastasse o diálogo todo em inglês com o nada fácil sotaque irlandês, Luke ainda tinha o raciocínio rápido – com a consciência certamente alterada – e fazia reflexões profundas, conectando ideias na velocidade da luz. Mas, de alguma forma, suas palavras falavam diretamente com a minha alma, então me permiti ficar atenta a cada uma delas, dando o meu melhor para absorver o que eu pudesse.

Passados alguns minutos, minha outra amiga também resolveu subir e se despediu de nós. Ficamos eu, Luke e seus amigos, Loraine e outro irlandês cujo nome não me lembro. Esse outro amigo parecia estar um tanto alterado pelo álcool e logo se foi também. Então resolvemos aceitar que a conversa não acabaria logo e nos sentamos na calçada. Apesar da presença de Loraine, ela não estava inteiramente ali. Não estava entregue à troca, parecia ansiosa, olhava o celular com frequência, mas acompanhava meu diálogo com Luke e às vezes soltava alguns comentários.

Discutimos sobre quantos de nós, nesse mundo, estamos acordados; quantos estão realmente vivendo a própria verdade e quantos estão apenas reproduzindo o que as mídias ditam, perseguindo o ideal de sucesso que nos foi vendido. Quantos enxergam uns aos outros e se permitem compartilhar um momento real com um estranho?

Foram muitas reflexões, uma atrás da outra, que fizeram eu me sentir extremamente compreendida como há muito tempo não me sentia. Todas aquelas conversas faziam total sentido para mim, e traduziam coisas que eu acreditava e sentia, mas não havia conseguido colocar em palavras ainda.

Em seguida, Luke contou um pouco da sua forte história. Sua mãe o teve em 1987, com apenas 16 anos. Naquela época, mãe solteira era muito julgada na Irlanda, um país extremamente católico. Diante dos desafios que enfrentaria com a maternidade, ela o enviou para adoção. Ele cresceu sabendo que era adotado e sempre se sentiu um pouco perdido, sem a sensação de pertencimento. “Talvez por isso eu viajei tanto. Acho que sempre estive buscando a mim mesmo”, ele disse.

Ao longo de seus 30 anos, morou na Austrália, Nova Zelandia, Canadá, viajou por toda parte, e sempre retorna à Dublin, sua cidade natal, para passar temporadas, como dessa vez, por exemplo. Em um desses retornos, conheceu sua mãe verdadeira. “Não tenho nenhuma mágoa dela, nem a culpo por ter me dado à doação. Pelo contrário, a amo muito e agradeço pelo que ela fez, pois isso fez de mim uma alma livre. Fez de mim quem sou hoje.”

Apesar da vibe hippie, Luke contou que não vendia sua arte na rua como manda o esterótipo, mas trabalhava como designer de móveis autônomo e eventuais participações como figurante na famosa série Vikings. “Mas trabalho apenas para viver e não o contrário”, ele destacou. Ele contou que tinha a liberdade de trabalhar de qualquer lugar e que era uma pena que a população em geral não é ensinada a empreender. “Somos ensinados a trabalhar para alguém maior, enriquecendo os outros, e não vendo o verdadeiro fruto do próprio trabalho”, disse. 

Enquanto lamentava pela “mentalidade atrasada e altamente conservadora da Irlanda”, ele comentou que sentia muito também pela transformação de Loraine, a garota que estava ali conversando com a gente. Foi então que descobri que Loraine era sua antiga paixão e que, agora, nesta temporada de Luke em Dublin, eles estavam se reencontrando após bons anos sem se ver.

Nesse instante, me senti mal por talvez estar atrapalhando algum tipo de encontro romântico, e até pedi desculpas por qualquer incoveniência, mas eles insistiram que não, que eu era bem-vinda ali, e que não estavam em nenhum tipo de encontro. Fiquei aliviada.

Quanto ao que Luke dizia sobre Loraine, ele se referia a sua identidade, que havia sido um tanto perdida em meio aos padrões de beleza propagados pela mídia. É claro que todas as mulheres, em todo o mundo, são influenciadas por este padrão sufocante, no entanto, a quantidade de maquiagem das mulheres irlandesas em geral era algo que realmente chamava a atenção. Diversas vezes me choquei ao descobrir a idade de mulheres irlandesas que, na verdade, eram adolescentes, bem mais jovens do que aparentavam por conta das diversas camadas de produtos que usavam, deixando a pele bem carregada, com muita, mas muita produção. 

Segundo Luke, ele já não reconhecia a Loraine por quem se apaixonou anos atrás. “Ela sempre foi tão linda, e agora anda montada, escondendo sua real beleza por trás de toda essa maquiagem”, disse. Mesmo sabendo que a intenção dele era boa, me senti mal por ela, que ficou constrangida com seu comentário, e respondeu que já não sabia viver de outra forma, especialmente sem seus grandes cílios postiços, como se aquela produção toda a fizesse se sentir mais protegida. Após mais alguns minutos de conversa, Loraine disse que precisava ir ao banheiro, mas que logo voltaria. Talvez ela morasse ali perto, mas temi que tivesse ido para casa, chateada com os comentários de Luke.

Até que, poucos minutos mais tarde, vi ela se aproximando, com passos lentos e inseguros. Ela estava sem os grandes cílios, e com os olhos cheios d’água. Quando se sentou novamente na calçada com a gente, pude ver que os olhos dela eram como dois lagos azuis. “Me sinto incompleta, me sinto fraca”, ela disse. “Você é muito linda, Loraine, e ainda mais linda assim, do jeito que realmente é”, ele contestou. Eu concordei: “Sim, você é maravilhosa. E agora posso ver com clareza a força do seu olhar.” Ela quase se emocionou.

A partir deste instante, sem a armadura dos cílios, Loraine se despiu. Ela, que até então parecia tão ansiosa, sempre checando o celular, simplesmente parou de se preocupar e se rendeu àquela troca de energia que acontecia ali. Confessou que tinha vontade de largar tudo, morar fora, viajar o mundo e se expandir, mas que não se sentia confiante o suficiente. E a conversa seguiu se desenrolando entre nós três.


Nada como a vulnerabilidade e a verdade que existem nas trocas que acontecem no silêncio da madrugada. Enquanto todos dormiam, era como se só existíssemos nós ali, e não havia motivo para não sermos apenas nós mesmos. Totalmente abertos para compartilharmos o nosso mundo e acessarmos o mundo do outro.


Luke então tirou da mochila uma garrafa de whisky irlandês, alguns copinhos, e brindamos. O dia estava amanhecendo e, ao olhar para o meu celular para checar as horas, vi a data, era 27 de setembro. Me toquei que, exatamente naquele dia, eu completava 2 anos de Irlanda – no melhor estilo, tomando um whisky irlandês, com dois irlandeses desconhecidos, tendo reflexões profundas, na calçada da rua.

Uma cena que, para a Renata de 2 anos antes, que vivia imersa em sua bolha, seria bem improvável. Talvez ela rotularia Luke como apenas um hippie louco e perderia a oportunidade de uma troca incrível, uma troca que certamente serviu como mais uma faísca para despertar minha alma livre e viajante.

Acredito que nenhum encontro acontece por acaso. Ao longo de nossa vida, certos laços, por mais sutis, influenciam a nossa jornada aqui. Sejam aquelas trocas rápidas e efêmeras como em uma fila de espera ou no banheiro de um bar, ou aquelas mais duradouras, com as pessoas que escolhemos dividir parte da vida.

Semanas depois, entrevistei Luke em um café, com a intenção de fazer uma espécie de reportagem sobre sua história. A matéria não aconteceu, mas ficou o registro 🙂

Naquela noite, quando comecei a conversar com Luke, logo vi que ele tinha a algo a me dizer. E ele também sabia. 

Uma alma com a vida pulsando, quando encontra outra alma aberta, sempre irá doar o que transborda em si. Uma mente que se expandiu, quando se depara com a sede de expansão de outra mente, naturalmente irá compartilhar.

Este é o poder do encontro, da palavra, da semente.  Somos todos guias uns dos outros. Ao crescermos com nossos próprios caminhos, pavimentamos o percurso para que mais pessoas possam crescer em suas próprias jornadas. 

Ao me despedir de Luke e Lorraine, ele me olhou nos olhos e disse: “You are an open soul.” (Você é uma alma aberta)

Eu sorri. Na sequência, abri o portão do prédio e subi as escadas em direção ao apartamento, com a cabeça borbulhando, pensando em tudo aquilo que acabava de acontecer. O encontro inusitado, as falas de Luke que conversavam comigo de um jeito inexplicável, a vulnerabilidade de Loraine ao tirar os cílios.

Concordei mentalmente com o que ele acabara de dizer sobre a minha alma e celebrei a mim por tê-la aberto para a vida.

Ter a alma aberta, para mim, é caminhar com o coração aberto, disposta a aprender, a se conectar e a confiar no caminho que o universo cria para a mim a medida que eu dou os passos.

Quando a gente se limita, imersos em nossa realidade, nossas verdades e até mesmo nossos planos, nos fechamos às infinitas perspectivas, possibilidades e surpresas da vida.

Ter a alma aberta é também não subestimar os encontros. Não substimar a sabedoria que pode vir das palavras de qualquer pessoa, seja uma criança, o porteiro com quem você fala por dois minutos ou a senhorinha simples do mercado da esquina que você acha que não tem nada a te ensinar.

Naquela noite, conhecer Luke foi como ver um pedacinho de mim em outro corpo. Acredito que, nessa viagem da vida, sempre vamos encontrar partes de nós, espalhadas por aí; só precisamos estar atentos.

Quando alguém nos inspira muito, quando algo toca a nossa alma de tal forma, é porque estamos reconhecendo uma verdade profunda dentro de nós mesmos refletida no outro.


É como se existisse uma parte de nós adormecida, e essa pessoa, com sua chama já acesa, acendesse essa mesma luz dentro de nós. Você pode ignorar, reprimindo isso, ou pode abrir a alma e se permitir acender. ✨

E você, tem alguma parte dentro de si que está esperando ser acordada? Quais foram os encontros que, de alguma forma, influenciaram a sua trajetória? Quais palavras, ditas despretensiomente por alguém, tiveram grande impacto em você?

Se cada pessoa é um mundo inteiro, o que você leva e o que você deixa a cada vez que visita o mundo do outro?


Com amor,

Renata Stuart

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