O preço de não ouvir a intuição

“É melhor você voltar”… disse a minha intuição.

O sentir estava confuso.
Então o pensar assumiu a direção:

“Vá em frente, não vai acontecer nada demais.”

Qual pode ser o preço de não se escutar?
Levar a vida acelerada, correndo para não sei onde, e afastando-se de si.
Se na vida somos passageiros, quem é que nos dirige? Quem dita o ritmo do nosso caminhar?
O que um instante de distração pode causar?

Minha passagem por Paraty foi curta. Mas o suficiente para me fazer “Voltar pra mim”, como o próprio nome da cidade sugere. “Para…ti”. Desculpe o trocadilho, a tia do pavê que habita em mim não pôde resistir. Mas foi exatamente isso que a cidade me proporcionou, no curto tempo em que estive lá.

Logo que cheguei naquela cidade inspiradora, histórica e artística, senti uma conexão forte. Como se eu já tivesse estado ali antes. E um forte chamado para de-sa-ce-le-rar.

Eu andava acelerada há cerca de um mês, talvez mais. Meus dias no Rio foram maravilhosos, mas o trabalho estava num período mais intenso e o tempo livre que eu tinha eu aproveitava para conhecer e desfrutar da cidade. Viajar e trabalhar pode ser incrível, mas é desafiador. Uma mescla de “preciso ser produtiva” e “preciso aproveitar a oportunidade de desbravar o lugar” . Especialmente quando se viaja rápido.

Cada vez mais, tenho descoberto que gosto mesmo é de viajar lento. Viver a vida no meu ritmo. Afinal, é para isso que escolhi ser nômade. Só que as vezes a rapidez ajuda no quesito aventura, poder explorar mais em menos tempo, mas daí a gente tem que ter cuidado para não perder o sentir.

No meu quarto dia em Paraty, era feriado de Corpus Christi. Pensei “Hoje finalmente vou desacelerar, aproveitar as belezas desse lugar.” Banho de cachoeira parecia o plano perfeito para equilibrar as energias e encontrar meu eixo de novo.

Depois de me divertir escorregando na famosa cachoeira do Tobogã, almocei com duas meninas simpáticas que conheci lá mesmo, e me despedi, cerca de 14h. Elas estavam em um passeio com um guia, e dali partiriam para outra cachoeira, com um grupo de turistas. Para não locais, isso parecia ser o “normal” ali: passeios com guias.

Eu estava sozinha, e iria à cachoeira do Jamaica, um lugar não turístico que havia sido indicado pela Cibelli, a dona do AirBnb onde eu me hospedei. Eu estava em busca de sossego e, como soube que não precisava de trilha para acessar a cachoeira, não pensei duas vezes.

Pra chegar lá, era só descer a rodovia e pegar um caminho de 5 minutos. Cheguei! Mas quando estava entrando, percebi que não tinha ninguém ali. Ninguém mesmo. Na entrada, havia uma grande pedra à direita, então naturalmente fui pelo lado esquerdo, que parecia ser o acesso mais fácil. Na verdade não pensei e nem avaliei muito o que seria o mais indicado, porque minha mente, naquele momento, tinha outras preocupações:

“E se os homens que me viram descendo a rodovia vierem aqui?” “E se chegar um homem enquanto eu estiver sozinha aqui?” “Será que vou conseguir correr até a rodovia se eu precisar?”

É melhor você voltar”… disse a minha intuição.
O sentir estava confuso. Então o pensar assumiu a direção: “Vá em frente, não vai acontecer nada demais, Paraty é um local seguro, logo deve chegar algum grupo de pessoas, hoje é feriado.” Continuei.

Para acessar a água, havia uma descida, com umas pedras grandes separadas por um curso forte de água. Decidi sentar na pedra, para chegar perto da água devagar, já que em pé eu escorregaria facilmente. Antes que eu pudesse me sentar por completo, caí de lado. Escutei um barulho forte de osso batendo na pedra. Fiquei zonza, e sentia uma dor muito muito forte em todo o braço esquerdo. “Putz, quebrei. quebrei algo.” – eu disse. Levei alguns segundos para entender a situação e recuperar o equilíbrio. “E agora? será que é melhor ir embora?” Olhei ao redor, vi as pedras que eu havia acabado de descer, completamente cheias de lodo, e pensei: “mas como eu vou embora?” Qual é a saída?” Olhei e simplesmente tudo parecia ter lodo. E o braço doía e pesava. Não seria fácil apoiar pra tentar subir com todo aquele lodo.

Na minha frente, havia o grande poço de água e uma pedra grande que escondia o restante do lugar. “Atrás dessa pedra deve ter uma saída de terra retornando pra rodovia, deve ser isso.”, pensei. Mergulhei com a mochila mesmo, que ficou totalmente submersa na água, e cheguei do outro lado para ver o que tinha atrás da pedra. Me enganei, não tinha nenhuma trilhazinha como pensei, o lugar acabava ali.

O pânico quis tomar conta. Respirei e pensei “vou ficar um pouco na água, logo vai aparecer alguém para me ajudar, vai dar certo.” Fiquei uns poucos minutos ali, molhando o braço na água super gelada, para ver se aliviava a dor. Mas não adiantou, a dor só aumentava, e ninguém havia chegado. O telefone, mesmo molhado, funcionava, mas não tinha rede. Zero sinal. Pensei: “vou meditar, relaxar, e a solução vai vir.” Fechei os olhos e até tentei ser a pessoa espiritualizada e centrada diante do caos, mas minha mente começou: “Mas e se escurecer? Melhor procurar um jeito de sair daqui logo, não dá pra relaxar e tentar aproveitar.”

Nesse momento eu decidi que eu precisava encontrar uma forma de sair dali. Tentei escalar a mata fechada, que era super íngreme, pensando que talvez dali eu poderia acessar à rodovia. No entanto, minha mochila já estava encharcada de água, ela pesava muito, e enquanto eu tentava subir, ela me puxava para trás. “Isso está muito perigoso, mas vou continuar tentando” – pensei. Fui subindo até onde eu pude, segurando nas árvores quando dava e cheguei a pisar num buraco, tendo minha perna completamente afundada por uns segundos. Foram vários arranhões e ralados no corpo. Até que chegou um momento em que não havia árvores para apoiar, e eu via claramente que eu corria um risco sério de cair para trás, rolando para baixo. Até pensei em deixar a mochila para trás, por causa da força contrária que ela fazia, mas vi que ainda assim seria perigoso.

Comecei a gritar “Socorro”, “Ajuda”. Gritava alto, mas meu grito parecia não ser nada comparado ao barulho da queda da cachoeira. “É melhor eu descer” – pensei. Senti vontade de chorar. Peguei mais uma vez o telefone para ver se tinha sinal e não tinha. : “Então é isso, estou presa na natureza?” – me perguntei.

Em questão de segundos, dezenas de pensamentos vieram a minha mente. Pensei que eu cairia daquela mata tentando sair e bateria a cabeça numa árvore, que eu me machucaria tentando escalar as pedras escorregadias, que eu poderia bater a cabeça e cair inconsciente na água, ou que talvez eu teria que dormir ali, esperar até que alguém aparecesse no outro dia. Mas como seria isso? E se viesse uma cobra ou algum outro bicho perigoso? Pensei em tudo isso e, por um breve instante, pensei até em desistir de tentar, e esperar alguém aparecer ou um milagre acontecer.

Sabe quando a gente paralisa de medo? Por um brevíssimo instante, eu pensei em paralisar. Lembrei de uma história que meu namorado havia me contado, de um conhecido dele que se perdeu numa trilha e teve que dormir na floresta. Era um cara muito espiritualizado que, no meio do desespero, recebeu a intuição de que deveria se imaginar como um animal da selva. Assim ele fez, e foi buscando a saída, mesmo no escuro, com a confiança de um selvagem. Por mais estúpido que isso possa parecer para alguns, naquele momento, com o instinto de sobrevivência tão vivo como nunca senti antes, eu pensei: “sou um leão”, e segui firme, entre gritos por socorro, choros e respirações profundas, eu decidi tentar e tentar, até conseguir.

Desci a mata íngreme, e chegando lá embaixo, subi em uma pedra alta de onde eu podia avistar todo o lugar, na tentativa de enxergar a melhor forma de sair dali com segurança. Eu continuava gritando na esperança de alguém ouvir e vir me ajudar, e claramente me veio a frase: ” se eu entrei existe uma forma de sair.” Sim, eu pedi à Deus, a todo meu aparato espiritual, e ignorei todo o desespero que estava ali, doido para se materializar em uma crise de ansiedade.

Defini que iria atravessar o poço, nadando até o meio, na tentativa de subir por uma grande pedra, num formato de rampa, que havia ali. Tinha bastante lodo, mas o centro dela parecia estar seco. Tentei nadar com a mochila, mas o peso dela continuava me atrapalhando, pois a corrente estava forte e me empurrava para o outro lado do poço. Tentei até a usar a mochila como boia. Não funcionou. Entendi que eu precisaria exercer de qualquer forma o desapego. Deixei a mochila com tudo dentro em cima de uma pedra, e foquei 100% em me tirar dali.

Tive que respirar fundo para me acalmar, fixando os olhos na pedra que eu queria alcançar, e pensei ” vou nadar calmamente até ali e segurar naquela pedra para tentar escalar.” Fui nadando devagar e consegui. Segurei na pedra e logo joguei meu corpo sobre ela. A única forma de subir seria como uma serpente, me arrastando na pedra, assim o risco de cair seria menor. Eu estava com biquíni e um blusão, decidi tirar o blusão para facilitar a aderência da minha pele, evitando a queda. Eu havia escutado isso de um moço, lá na cachoeira do Tobogã.

Como não consegui apoiar o braço esquerdo, pois doía muito, apoiei o braço direito e fui arrastando a perna direita. Com o pé esquerdo, eu ia pisando bem devagar na parte seca da pedra, com muito cuidado e presença para não pisar no lodo. Qualquer deslize ali me faria escorregar. Fui me arrastando para cima e, quando senti que já estava mais segura, dei um impulso maior com o corpo, para me distanciar da parte mais íngreme, e me levantei.
Olhei para baixo e vi que estava salva. Tentei achar a saída, mas foi como se minha mente tivesse dado um branco diante do estresse. Eu não conseguia achar o caminho de volta à rodovia, aquilo parecia um pesadelo, em que a natureza era um labirinto.

Eu continuei gritando e andando em busca da saída. Entrei em um lugar com uma placa “propriedade privada”, vi cerca de 5 casinhas, no estilo chalé, e gritei por ajuda, mas ninguém me respondeu. Depois de tentar mais uma vez achar a outra saída, voltei à propriedade privada e um senhor havia acabado de chegar. Foi só então que percebi que ali tinha uma porteira que dava acesso à rodovia. Na porteira, um casal gritou: “Ei, você está bem? Escutamos os seus gritos, mas não sabíamos bem de onde vinha.”

Eles moravam bem ali na rodovia, perto da cachoeira. No mesmo instante, eles foram o mais próximo que eu tive de “pai e mãe” para soltar as emoções. Eles me deram o acolhimento que eu precisava após duas horas de pânico. A mulher, Jennifer, disse que aquela cachoeira pode ser perigosa, especialmente se você não a conhece. Ela contou que várias pessoas já se machucaram ali e me mostrou que a entrada mais “correta” não era pela esquerda, como eu fiz.

A tal pedra grande, do lado direito da entrada, era, na verdade, uma gruta que dava fácil acesso ao poço, com segurança e tranquilidade. Pensei no quanto eu estava desconectada e ausente para nem sequer enxergar e ponderar a melhor forma de entrar. Refleti sobre como teria sido se eu estivesse mais atenta, ou se pelo menos houvesse mais pessoas ali, entrando no mesmo momento, deixando claro qual era a rota correta a seguir. Como teria sido o meu dia, desfrutando daquela cachoeira tão linda?

Jennifer me disse que eu fui auxiliada pelos guias espirituais daquele lugar de energia linda e potente. O marido dela recuperou minha mochila e eles me levaram até a casa deles, onde me deram água e roupas para ir embora. Peguei a van, uma moto-táxi e cheguei ao hospital da cidade, onde descobri que, de fato, eu havia quebrado o ombro esquerdo. O sentimento foi de frustração. Mal cheguei em Paraty, e já era hora de partir. Passada a frustração, veio a certeza: o único lugar que quero estar é em casa, com os meus. Eu já iria passar uma temporada com eles no dia 20, então só adiantei a ida em 10 dias.

Desde então, o que tem ecoado aqui dentro é: O que me faltou como viajante, especialmente como uma mulher viajando sozinha? Sim, eu me coloquei naquela situação. Faltou presença, faltou escutar a minha intuição e lembrar que, em casos como esses, se existe uma dúvida, a resposta é não. Eu, que havia tatuado a palavra coragem no peito há poucos dias, talvez tenha passado um pouco do ponto, esquecendo o significado profundo da palavra: coragem é agir com o coração, é agir com amor. Eu agi no impulso, agi com a mente, não agi com o sentir. Ir a uma cachoeira sozinha, sendo mulher, em um lugar desconhecido para mim, não é agir com (auto)amor. 

Sim, eu me coloquei nessa situação, mas também me tirei dessa situação. Então, além da culpa, eu escolho ver também a minha força. Escolho reconhecer que sou forte como um leão. E o que me deu energia para que eu lutasse como um leão foi unicamente a paixão pela vida. Eu sou uma amante assumida da vida e seria impossível ter agido diferente nessa situação.

Aliás é por amar a vida que eu estava ali, viajando sozinha e vivendo, longe da falsa ilusão de segurança que temos em nossa zona de conforto. Entendo que o risco é a consequência do viver, e se pararmos pra pensar, corremos riscos o tempo todo, inclusive dentro de casa ou ao atravessar a rua.

De qualquer forma, aprendo que preciso, sim, ter respeito….respeito pela minha natureza humana, e respeito ao adentrar a natureza tão linda do nosso mundo. Fiquei presa dentro dela para lembrar que os labirintos da vida também ensinam, e que andar por aí acelerada, no ritmo que o mundo nos impõe, pode custar caro.

Quero, sim, seguir viajando, quero, sim, habitar lugares incríveis que eu ainda nem sei que existem, mas o lugar que eu não quero deixar de habitar, em hipótese alguma, é em mim mesma. O único lugar que a gente habita de verdade é dentro de si. Nos outros, sou apenas uma viajante, passageira, transitória. Frágil, finita. Estou aqui, agora, mas um dia não estarei. Então, enquanto eu estiver, quero estar presente. 

No caminho entre sair de Paraty de ônibus, chegar ao Rio, e pegar um avião à Belo Horizonte, me vi dependente das pessoas para fazer coisas simples como arrumar minha mochila, tirar a roupa, carregar a bagagem, amarrar o cabelo, abrir uma garrafa de água… E lembrei de como às vezes é necessário pedir ajuda. E que enfrentar esse incômodo de ter que pedir ajuda também tem algo a nos ensinar , se estivermos abertos.

Ao encarar a frustração de frente, lembrei que a vida é esse pêndulo com altos e baixos, e que o nosso desafio nessa experiência é justamente lidar com os baixos. Lembrei do princípio 90/10, que um psicólogo certa vez compartilhou comigo, em uma sala de espera de aeroporto. O princípio nos ensina a não desperdiçar energia com aquilo que não podemos controlar… Fui convidada a colocá-lo em prática, não dando um peso tão grande ao que aconteceu. Ao invés disso, focar na solução, abraçar a aceitação, e aproveitar cada acontecimento como mais uma oportunidade de crescer. O que mais posso fazer?

Na verdade na verdade, ao ajustar essa lente, ao mudar a forma de ver: vejo que deu tudo certo. Vejo que sou amparada, guiada, protegida. Tive força para sair, fui acolhida por pessoas boas que escutaram a minha voz, e tive uma fratura leve, que logo não terá deixado vestígios, e estarei novinha em folha.

Sobre Paraty? A cidade não vai fugir, no tempo certo, voltarei. Que ilusão a nossa acreditar que tudo sempre será como nossos planos. A vida é fluida, não temos total controle sobre essa viagem, ela não é programada. A vida não é linear. O autoconhecimento, a busca por presença e por evolução… nada disso é linear. A gente precisa, todos os dias, conscientemente, escolher se cuidar, se amar e não cair no automatismo. Ser autorresponsável pela vida que levamos. Se a gente vacila, logo já estamos adormecidos ou acelerados, vivendo um ritmo fora do compasso do nosso coração.

Acho que entendi o recado que a vida quis me dar: “Sim, siga sendo corajosa, mas vá com presença, vá com amor, porque o mundo é lindo, e você ainda tem muito a experienciar.”
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